Em obra recente “13 contos diabólicos e um angelical”, Frei Betto, em um dos contos, narra a ida da alma de Viriato ao Inferno. Ao contrário do que marca nosso imaginário, ele se depara com uma sala com TV. Ele então liga o aparelho e tem acesso a todo um cardápio de programação. Segundo o Frei "A TV olhava-o ad eternum; ele sequer podia cerrar as pálpebras, ou se levantar da poltrona à qual estava grudado". Não nos resta dúvida, de todos os veículos de comunicação, a televisão é o mais poderoso, pois tratasse de um veículo monológico, com grande poder hipnótico. Ocorreu neste episódio um verdadeiro seqüestro da identidade, nos moldes do que acontece no mundo do consumismo, provocando um profundo vazio e solidão.
Os valores difundidos na conjuntura atual, no contexto da globalização neoliberal, são visivelmente marcados pelo processo de desumanização das pessoas e coisificação das relações sociais. "A cultura neoliberal está descosturando a nossa subjetividade; com o liberalismo o mercado é que rege a vida; você é livre para escolher um produto, desde que tenha renda para exercer seu consumismo". O capitalismo em seu formato neoliberal mercantiliza tudo o que toca, as relações sociais tornam-se reféns do mercado: a relação pai e filho, o casamento, as relações de amizade, etc. Os laços de solidariedade se fragilizam, perante a cultura da violência e do individualismo sem medida. O ideário fundamentalista de que não há transformação possível e, tampouco, alternativa à sociedade do mercado, provoca desesperança, e a juventude volta seus interesses para o culto à saúde e para o próprio “crescimento” pessoal. Predomina a preocupação com o autocrescimento psíquico: superar o “medo do prazer” e a depressão, entrar em contato com seus sentimentos, mergulhar na sabedoria do oriente, etc. A lógica é viver o presente com toda paixão possível, sem nenhum senso de responsabilidade pela vida das pessoas ou qualquer sentimento de cuidado. Há a perda do senso histórico e a falta de projeções esperançosas para o futuro.
Isto significa que o importante é viver para si, e não para os que virão a seguir. Perdemos o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão ao futuro. Para nós, que vivemos numa “sociedade” sem futuro, nos restando viver voltados apenas “para o momento”, nada melhor do que fixarmos nossos olhos em nossos próprios desempenhos particulares, e fazermos de tudo para sermos melhores que todo mundo, seja na economia, na política, no trabalho, na estética, no esporte, etc. Tornamo-nos reflexos e reféns de nossa própria decadência e sofrimento, porque centralizamos nossos pensamentos e atitudes unicamente em nós mesmos, e estamos despreocupados em relação aos que nos cercam e cativam. Cantamos hinos à liberdade, enquanto fingimos ser livres! Passamos a considerar que o único bem que possuímos é a própria “sobrevivência individual” (individualismo), pois, como dizem: só se tem uma vida para se viver! A partir deste processo de “isolamento do eu”, como afirma o sociólogo Marcelo Sodré, o indivíduo torna-se extremamente narcisista, não no sentido daquele que ama a própria imagem no espelho, mas que age a partir do seu próprio vazio interior: a solidão. O espantoso desenvolvimento tecnológico e científico criou a sociedade do espetáculo, e boquiabertos e estupefatos contemplamos os dois lados do Fausto. O valor sagrado da presença é esmagado pela idolatria dos presentes, e emerge no palco das desesperanças o que David Riesman chamou de multidão solitária.
O neoliberalismo transformou a produção da cultura em produção de mero entretenimento, que exacerba o nosso sentido, mas não infunde valores. O consumismo atávico e compulsivo de nossos dias, com a transformação do supérfluo em necessidade, que a publicidade impõe a todos nós, nos impõe a idolatria e o endeusamento das coisas. Como o Homem é o único animal que sabe que nasceu e tem consciência de sua finitude, a televisão utiliza o artifício de transformar a morte em violência e o sexo em pornografia. "Está feita a fórmula que vai prender o homem diante da TV". O capitalismo, segundo ele, também tem suas artimanhas. Na Inglaterra, foi criada a cerveja Che Guevara. "Transformaram um mito libertário em um produto de consumo".
Os Shopping Centers são centros comerciais construídos com linhas arquitetônicas pós-modernas, um dos não-lugares das cidades, segundo Marc Auge. "Neles você só entra com roupa de domingo, as lojas são capelas com seus veneráveis objetos de consumo, oferecidos por sacedortisas aos consumidores". Quando vai a um Shopping e é perguntado se quer alguma coisa, Frei Betto costuma responder que está apenas fazendo um "passeio socrático". Segundo ele, Sócrates (470-399 a.C), costumava dizer, na sua época: "Estou apenas observando para ver quanta coisa existe que eu não preciso para ser feliz".
Hoje, o produto que se porta é que imprime o valor à pessoa, e as etiquetas passaram ao lado externo da roupa. "Se eu chegar à casa de alguém de ônibus, eu vou ter um valor; se chegar de Mercedes ou BMW, o valor será outro". Vivemos numa sociedade cercada de um apelo consumista sem medida, indispensável a reprodução da sociedade capitalista, mas ainda havia um nicho que estava fora desse apelo: a infância. Mas a criança é uma consumidora poderosa pelo seu poder de persuasão. Para transformar a criança em consumista a publicidade promoveu a erotização precoce da criança. Atualmente, as crianças são biologicamente infantis e psicologicamente adultas; mas ao chegar o choque da adolescência, perante o fim da fantasia e a caída na realidade, o traficante vende a ilusão de que é possível continuar ‘viajando’ sem ter que encarar o real. Tratasse do que podemos chamar de pseudo-transcendencias, experiências que provocam a fuga da realidade e não nos potencializam para enfrentar e viver os desafios do cotidiano.
No campo cultural, é importante frisar que associar a obra de arte ao autor, como faz a cultura do consumo, é mercantilismo. A obra de arte tem valor em si, independe de quem a criou. Nenhum de nós vê com os mesmos olhos a mesma realidade. Todo ponto de vista é a vista de um ponto; a arte é polissêmica, seu papel é nos fazer olhar. É com a arte que se constrói aquilo que a miséria destrói.
Cultura é tudo aquilo que é criado pelo ser humano e independe de estudo. Ninguém é mais culto que o outro; há culturas distintas que se complementam. Mas a sociedade elitista e racionalista criou o mito de que culta é a pessoa que freqüentou a escola. Eu sou formado em História, minha mãe tem uma excelente cultura culinária; quem pode viver sem a cultura do outro? Portanto, existe todo um trabalho cultural em qualquer atividade humana. É preciso valorizarmos a cultura popular, em nichos que ainda não foram mercantilizados, porque ela traz uma releitura da sociedade em que vivemos. A cultura que emerge das periferias precisa ser percebido como poderoso e importante instrumento de libertação social dos povos!
Michel Sodré
Historiador
Os valores difundidos na conjuntura atual, no contexto da globalização neoliberal, são visivelmente marcados pelo processo de desumanização das pessoas e coisificação das relações sociais. "A cultura neoliberal está descosturando a nossa subjetividade; com o liberalismo o mercado é que rege a vida; você é livre para escolher um produto, desde que tenha renda para exercer seu consumismo". O capitalismo em seu formato neoliberal mercantiliza tudo o que toca, as relações sociais tornam-se reféns do mercado: a relação pai e filho, o casamento, as relações de amizade, etc. Os laços de solidariedade se fragilizam, perante a cultura da violência e do individualismo sem medida. O ideário fundamentalista de que não há transformação possível e, tampouco, alternativa à sociedade do mercado, provoca desesperança, e a juventude volta seus interesses para o culto à saúde e para o próprio “crescimento” pessoal. Predomina a preocupação com o autocrescimento psíquico: superar o “medo do prazer” e a depressão, entrar em contato com seus sentimentos, mergulhar na sabedoria do oriente, etc. A lógica é viver o presente com toda paixão possível, sem nenhum senso de responsabilidade pela vida das pessoas ou qualquer sentimento de cuidado. Há a perda do senso histórico e a falta de projeções esperançosas para o futuro.
Isto significa que o importante é viver para si, e não para os que virão a seguir. Perdemos o senso de pertencermos a uma sucessão de gerações que se originaram no passado e que se prolongarão ao futuro. Para nós, que vivemos numa “sociedade” sem futuro, nos restando viver voltados apenas “para o momento”, nada melhor do que fixarmos nossos olhos em nossos próprios desempenhos particulares, e fazermos de tudo para sermos melhores que todo mundo, seja na economia, na política, no trabalho, na estética, no esporte, etc. Tornamo-nos reflexos e reféns de nossa própria decadência e sofrimento, porque centralizamos nossos pensamentos e atitudes unicamente em nós mesmos, e estamos despreocupados em relação aos que nos cercam e cativam. Cantamos hinos à liberdade, enquanto fingimos ser livres! Passamos a considerar que o único bem que possuímos é a própria “sobrevivência individual” (individualismo), pois, como dizem: só se tem uma vida para se viver! A partir deste processo de “isolamento do eu”, como afirma o sociólogo Marcelo Sodré, o indivíduo torna-se extremamente narcisista, não no sentido daquele que ama a própria imagem no espelho, mas que age a partir do seu próprio vazio interior: a solidão. O espantoso desenvolvimento tecnológico e científico criou a sociedade do espetáculo, e boquiabertos e estupefatos contemplamos os dois lados do Fausto. O valor sagrado da presença é esmagado pela idolatria dos presentes, e emerge no palco das desesperanças o que David Riesman chamou de multidão solitária.
O neoliberalismo transformou a produção da cultura em produção de mero entretenimento, que exacerba o nosso sentido, mas não infunde valores. O consumismo atávico e compulsivo de nossos dias, com a transformação do supérfluo em necessidade, que a publicidade impõe a todos nós, nos impõe a idolatria e o endeusamento das coisas. Como o Homem é o único animal que sabe que nasceu e tem consciência de sua finitude, a televisão utiliza o artifício de transformar a morte em violência e o sexo em pornografia. "Está feita a fórmula que vai prender o homem diante da TV". O capitalismo, segundo ele, também tem suas artimanhas. Na Inglaterra, foi criada a cerveja Che Guevara. "Transformaram um mito libertário em um produto de consumo".
Os Shopping Centers são centros comerciais construídos com linhas arquitetônicas pós-modernas, um dos não-lugares das cidades, segundo Marc Auge. "Neles você só entra com roupa de domingo, as lojas são capelas com seus veneráveis objetos de consumo, oferecidos por sacedortisas aos consumidores". Quando vai a um Shopping e é perguntado se quer alguma coisa, Frei Betto costuma responder que está apenas fazendo um "passeio socrático". Segundo ele, Sócrates (470-399 a.C), costumava dizer, na sua época: "Estou apenas observando para ver quanta coisa existe que eu não preciso para ser feliz".
Hoje, o produto que se porta é que imprime o valor à pessoa, e as etiquetas passaram ao lado externo da roupa. "Se eu chegar à casa de alguém de ônibus, eu vou ter um valor; se chegar de Mercedes ou BMW, o valor será outro". Vivemos numa sociedade cercada de um apelo consumista sem medida, indispensável a reprodução da sociedade capitalista, mas ainda havia um nicho que estava fora desse apelo: a infância. Mas a criança é uma consumidora poderosa pelo seu poder de persuasão. Para transformar a criança em consumista a publicidade promoveu a erotização precoce da criança. Atualmente, as crianças são biologicamente infantis e psicologicamente adultas; mas ao chegar o choque da adolescência, perante o fim da fantasia e a caída na realidade, o traficante vende a ilusão de que é possível continuar ‘viajando’ sem ter que encarar o real. Tratasse do que podemos chamar de pseudo-transcendencias, experiências que provocam a fuga da realidade e não nos potencializam para enfrentar e viver os desafios do cotidiano.
No campo cultural, é importante frisar que associar a obra de arte ao autor, como faz a cultura do consumo, é mercantilismo. A obra de arte tem valor em si, independe de quem a criou. Nenhum de nós vê com os mesmos olhos a mesma realidade. Todo ponto de vista é a vista de um ponto; a arte é polissêmica, seu papel é nos fazer olhar. É com a arte que se constrói aquilo que a miséria destrói.
Cultura é tudo aquilo que é criado pelo ser humano e independe de estudo. Ninguém é mais culto que o outro; há culturas distintas que se complementam. Mas a sociedade elitista e racionalista criou o mito de que culta é a pessoa que freqüentou a escola. Eu sou formado em História, minha mãe tem uma excelente cultura culinária; quem pode viver sem a cultura do outro? Portanto, existe todo um trabalho cultural em qualquer atividade humana. É preciso valorizarmos a cultura popular, em nichos que ainda não foram mercantilizados, porque ela traz uma releitura da sociedade em que vivemos. A cultura que emerge das periferias precisa ser percebido como poderoso e importante instrumento de libertação social dos povos!
Michel Sodré
Historiador
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